terça-feira, 30 de dezembro de 2008

OBRIGADO ESTRANHO - AS PALAVRAS QUE NUNCA TE DIREI (Parte I)

Tal como havíamos prometido, e depois do retemperante (e merecido) descanso natalício, somos hoje a divulgar um primeiro excerto da "obra" Obrigado estranho - as palavras que nunca te direi, trabalho que, recordamos, valeu à nossa aluna Jéssica Garcês o primeiro lugar no Concurso SOS Freira do Bugio.
Obrigado estranho – as palavras que nunca te direi é uma original história de ficção sobre uma ave endémica da Madeira ameaçada, a Freira do Bugio (Pterodroma feae). Com um razoável nível de rigor científico esta "obra" junta ingredientes como o humor, a tragédia, a acção e uma pitada de romance, abordando a problemática da conservação da espécie, vista da perspectiva de um jovem macho procelarídeo.
Aqui vai o primeiro de cinco "capítulos" da história...

A nossa história passa-se algures em pleno Atlântico norte, num pequeno ilhéu situado a uma latitude de 32° 23' 03'' N, decorre o ano de 2006. Gon-Gon, o protagonista da nossa história, é um jovem macho da família dos Procelaridae recém-chegado de uma longa jornada em pleno mar alto.
Há já cerca de seis meses que Gon-Gon e a sua companheira, Pterodrómia, vagueiam pelo oceano em busca de uma vida melhor. Os tempos difíceis (a que alguns chamam de crise) fizeram-nos emigrar para outras paragens mas, de seis em seis meses, fazem questão de regressar a casa para rever família e amigos. Partiram juntos, ainda namorados, acompanhados dos zelosos pais de Pterodrómia e mais um grupo de amigos rumo ao mar alto.
O regresso a casa do jovem casal é marcado pelo natural cansaço da viajem, atenuado porém pela expectativa de reverem familiares e a terra que os viu nascer. Mas outros motivos maiores explicam a felicidade reinante no jovem casal. É que Pterodrómia tem engordado muito nos últimos tempos (mais de dez gramas!) o que, aliado aos desejos súbitos de camarão e polvo à sobremesa, bem como outros excêntricos hábitos alimentares, confirmaram as suspeitas de Gon-Gon: ia ser pai! Pterodrómia tentara comunicar-lhe o facto mais cedo mas o jovem Gon-Gon, distraído como sempre, não conseguira ler nas entrelinhas a mensagem da companheira. Agora tudo fazia sentido! As insinuações de Pterodrómia, num final de dia em que juntos tomavam banhos de Sol boiando em pleno mar alto. Pterodrómia dissera-lhe que estava com um “pequeno atraso”. Na altura o jovem macho, recostado nas ondas a ler as notícias do dia numa nuvem disforme, estava longe de perceber o que a namorada lhe pretendia dizer. Limitara-se apenas a acenar a cabeça e a afirmar displicentemente “certo querida, vamos já ter ao restaurante para o jantar combinado com os teus pais. Mas olha que ou muito me engano ou estás equivocada. Não estamos nada atrasados”. Como pudera ser tão ignorante, questionava-se agora.
Era já noite alta quando chegaram a casa. Marcaram o voo de regresso para as últimas horas do dia para evitar o indesejável encontro com as desagradáveis gaivotas-de-patas-amarelas e outra vizinhança de reputação duvidosa que recentemente se instalou no ilhéu. Gon-Gon quisera estabelecer-se na Deserta Grande mas, por causa dos familiares e amigos, todos eles ali residentes, acabaram por permanecer na terra natal.
O silêncio da noite era apenas quebrado pelo zumbir do vento a embater contra a grande enseada. Não obstante o Verão estar à porta o vento soprava impiedoso. Despediram-se dos parceiros de jornada e dirigiram-se a casa, uma imponente cavidade mandada escavar por Gon-Gon antes da partida, com dois metros de largura e um de profundidade, lá bem no cimo da escarpa mais alta do ilhéu. Pterodrómia bem tentara convencer o companheiro de que não precisavam de uma casa tão grande mas, nestas coisas, o orgulho de Gon-Gon acabava sempre por levar a melhor. “Tenho de pensar na nossa descendência, querida”, ripostara então o jovem macho em tom altivo. “Não queres que vá morar com os teus pais, pois não?” Pterodrómia nem se atrevera a rebater as palavras do companheiro. Conhecia perfeitamente a opinião de Gon-Gon em relação aos seus progenitores e não queria alimentar discussões. Afinal, reconhecia, bem lá no fundo, que os seus pais, principalmente a mamã, eram especialistas em provocar Gon-Gon com questões impertinentes do género: “Quais são as suas intenções para com a nossa filha? Será você capaz de sustentá-la e aos nossos netos?; Diga-nos lá, você não tem vícios, pois não?” intervenções que invariavelmente acabavam por tirar Gon-Gon do sério. Hoje, com um bebé a caminho, Pterodrómia congratulava-se pela opção perspicaz do companheiro.
Gon-Gon entrou primeiro, inspeccionou minuciosamente a sala e, não notando quaisquer sinais indicadores da presença de indesejáveis inquilinos – o seu receio maior era que na sua ausência as cagarras lhes tivessem tomado a residência de assalto – acenou a Pterodrómia para que entrasse. A futura mamã entrou cambaleante, com uma asa a apoiar as costas, logo reclinando-se no sofá a um canto. Gon-Gon desfez as malas enquanto Pterodrómia retemperava o fôlego. Por entre a penumbra o jovem macho pôde ver-lhe as faces alvas como a espuma das marés; as manchas cinzento-escuras em torno dos olhos conferiam-lhe um efeito de beleza única que nenhuma maquilhagem do mundo seria capaz de igualar, pensou. Naquele momento Gon-Gon sentia-se o macho mais afortunado da sua espécie, afinal era o companheiro da fêmea mais bela e dócil das cerca de centena e meia que integravam a colónia. Suspirou de felicidade e tomou gentilmente nas suas asas a sua bela, entretanto adormecida, transportando-a até à cama. Aconchegou-a entre os lençóis de gramíneas e deixou-se também ele cair nos braços de Morfeu.

(Continua...)

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