quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

OBRIGADO ESTRANHO - AS PALAVRAS QUE NUNCA TE DIREI (parte II)

Parte II

O Sol já ia alto quanto Pterodrómia finalmente acordou. Abriu primeiro um olho e depois o outro, como que querendo certificar-se de que estava realmente em casa. Ao seu lado Gon-Gon encontrava-se ainda imerso num sono profundo ressonando ruidosamente. A jovem fêmea levantou-se cuidadosamente do seu leito – não queria acordar Gon-Gon que ainda recuperava do esforço dispendido na grande travessia –, ajeitou as penas cinzento-escuras das asas com o bico cor de carvão e espreitou à janela. Estava um lindo dia no ilhéu. As cagarras esvoaçavam em voo rasante sobre o mar à caça de pequenos peixes, num espectáculo apreciado por muitos mas nada do agrado dos da sua espécie. “Malditas cagarras!” – pensou Pterodrómia amaldiçoando as rivais que tanto lhes dificultavam a vida, competindo pelos melhores lotes de terreno do ilhéu e pelo alimento.
O estômago composto da jovem fêmea roncava implorando por comida. Pterodrómia sabia o quão arriscado poderia ser aventurar-se à procura de alimento em pleno dia. Desde juvenil ouvira histórias de desagradáveis encontros dos da sua espécie com gaivotas-de-patas-amarelas, ou mesmo cagarras, que haviam terminado mal, invariavelmente para o mesmo lado. Mas a fome apertava cada vez mais e Pterodrómia, não tanto por si mas mais pelo bebé, decidiu arriscar. Alongou as asas e lançou-se escarpa abaixo tomando um percurso alternativo que lhe havia sido ensinado pelo pai quando, ainda juvenil, participara numa pescaria em busca de alimento para o seu irmão recém-nascido. Em pleno voo, o vento de encontro ao seu rosto e o ar salgado a penetrar-lhe nas narinas conferiam à esbelta fêmea uma sensação única de liberdade. No entanto, Pterodrómia foi invadida por um sentimento estranho de que algo mudara na paisagem. Deve ser da fome – pensou, sacudindo os pensamentos da sua mente.
À medida que se aproximava da superfície do mar conseguia distinguir lá em baixo, através da água translúcida, um cardume de castanhetas pretas que pululavam naquelas águas. Num gesto de habilidade inata Pterodrómia rompeu a água em direcção ao cardume emergindo logo à frente com uma grande castanheta estrebuchante presa pelo seu forte bico. Satisfeita com o seu desempenho, deu meia volta e retornou a casa.
Chegada ao lar verificou que o seu companheiro ainda dormia. A jovem dona de casa preparou minuciosamente a mesa e chamou Gon-Gon para a refeição. “Acorda mandrião”, ordenou a jovem fêmea, com a vocalização característica da sua espécie. Gon-Gon escancarou o bico soltando um enorme bocejo e, esticando preguiçosamente as asas, ripostou: “Bom dia querida. Vejo que foste às compras” retorquiu, com um sorriso maroto.
Com a moela aconchegada pela retemperante refeição o jovem casal esperou pelas últimas horas de luz do dia para realizar a habitual ronda pela colónia, desta vez com a particularidade de irem revisitar amigos e saciar as saudades dos recantos do velho ilhéu – pelo menos assim pensavam. Logo que o manto escuro da noite desceu sobre a pequena ilha puseram-se a caminho. Ainda mal haviam iniciado o voo e logo se aperceberam de que algo estranho se passava com alguns elementos da colónia. Apesar dos estridentes chamamentos poucos foram os procelarídeos que os retribuíram, ainda que lá longe ouvissem um ou outro ripostar semelhante a um lamento, como que prenunciando uma qualquer desgraça. Decidiram efectuar um voo rasante e puderam então constatar que muitas das casas dos seus amigos e vizinhos haviam sido destruídas. “Onde estão todos?” perguntava nervosa e insistentemente Pterodrómia a Gon-Gon, pergunta para a qual o jovem macho também ansiava por resposta. Dirigiram-se então até à casa dos pais de Pterodrómia situada na vertente Este do planalto sul do ilhéu. Temendo o pior, a ausência de resposta aos seus chamamentos, a jovem fêmea logo encetou uma frenética actividade vocal gritando “Papá! Mamã!” que, para sossego de Pterodrómia – e obviamente também de Gon-Gon – logo foi retribuída pela vocalização grave do senhor Freire, o pai de Pterodrómia.
À medida que se aproximava da entrada o imponente macho, sacudindo a ponta da asa, apressou-se a tranquilizar o jovem casal: “calma rapazes, está tudo bem connosco”, sossegou-os, envolvendo a filha nas suas longas asas. “O que é que se passou aqui senhor Freire? O que significa tudo isto?” disparou Gon-Gon não conseguindo disfarçar o pânico que alimentava o seu coração aos pulos. Pela primeira vez na sua vida o jovem macho procelariforme experimentava o medo e sentia-se impotente face às tentativas de o dominar. Sentia medo só de pensar na possibilidade de perder Pterodrómia e o seu filho; sentia medo daquela ameaça, seja lá o que ela fosse. “Uma pergunta de cada vez rapaz” replicou o senhor Freire enquanto, já no interior da espaçosa sala, se acomodavam a um canto. “Infelizmente esta situação não é propriamente novidade para os membros mais velhos da colónia. O que aconteceu é que na nossa ausência os coelhos nos usurparam as casas destruindo tudo à sua passagem. É algo com que os da nossa espécie têm de aprender a viver, ainda que tal muito nos custe” esclareceu, sorvendo um gole de chá entretanto servido pela mãe de Pterodrómia. Sem se deter: “Tudo começou há muitos anos atrás quando o Homem aqui chegou trazendo consigo alguns animais como os coelhos, as cabras ou os murganhos. Os meus pais contaram-me esta história, que lhes fora transmitida pelos seus pais e que, agora, incumbe-me transmitir a vocês” disse, com ar muito circunspecto, logo prosseguindo o seu raciocínio: “Nesses tempos a nossa espécie prosperava por todas as ilhas das Desertas e até nas grandes ilhas (Madeira e Porto Santo). Depois, bem, depois as cabras, os murganhos e os coelhos ocuparam o nosso nicho ecológico e a nossa população foi diminuindo progressivamente até ficarmos circunscritos a este pequeno ilhéu” rematou, num tom grave e sério denunciador do seu desalento.Gon-Gon e Pterodrómia ouviam atentamente, de olhos esbugalhados, as palavras do líder da colónia. Sabiam que a sobrevivência dos da sua espécie no ilhéu nunca fora fácil. Estavam porém longe de imaginar que os seus antepassados houvessem atravessado tamanhas dificuldades. Sim, sabiam que os mamíferos, principalmente os coelhos, não eram companhia de se fiar mas, daí até quase dizimarem a sua espécie?! “Como se já não nos bastasse a competição das outras aves rivais” pensou Gon-Gon. Contudo o jovem macho recusava-se a baixar as asas. Gon-Gon não iria assistir impavidamente, de asas cruzadas, ao desaparecimento da sua espécie. Alguma coisa poderia concerteza ser feita para evitar essa catástrofe. Agora que já sabia o que se passava, agora que já conhecia a raiz do problema, agora que já ultrapassara o medo inicial, o jovem macho estava decidido a agir. Ainda não sabia como, sabia apenas que estava determinado a fazer algo e que quando assim era nada nem ninguém o conseguia demover. “Tenho um filho a caminho e faço questão de ver os meus netos” disse, decidido, para com as suas penas.
(Continua...)

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